ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 17 Maio à Agosto de 2012
 
   
 
   
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A Intersetorialidade a partir da construção de um caso clínico:
aproximações entre Clínica Ampliada e a Psicanálise

The Intersectoral from the construction of a clinical case:
similarities between Extended and Clinical Psychoanalysis

 
     
 

Robson de Jesus Duarte
Psicólogo clínico no CMT (Centro Mineiro de Toxicomania) da rede FHEMIG Pós Graduando em Saúde Mental: política, clínica e práxis, pela PUC Minas
E-mail: robson.duarte.psi@gmail.com

 

Resumo: Este artigo busca elucidar e aproximar os conceitos de construção de caso clínico e intersetorialidade a partir das raízes psicanalíticas. Estabelece aproximações entre a clínica ampliada e a psicanálise lacaniana, além de sugerir uma práxis em saúde mental fundamentada no caso clínico e sua construção.

Palavras-chave
: construção de caso, clínica ampliada, psicanálise.

Abstract: This article seeks to elucidate and bring the building concepts and clinical case of intersectionality from the psychoanalytic roots. Establishing links between the expanded clinical and Lacanian psychoanalysis, in addition to suggesting a praxis in mental health based on clinical case and its construction.

Keywords
: case construction, expanded clinic, psychoanalysis.

 
 

1. INTRODUÇÃO

Neste trabalho busca-se apresentar a partir de pesquisa bibliográfica e estudo de caso, quais as possibilidades de um trabalho intersetorial, articulado às questões da singularidade de cada sujeito. Desta maneira, propõe-se uma noção de clínica ampliada que mantenha a clínica como palavra não negada nas instituições.

Para que seja possível esta empreitada, é necessário o retorno ao conceito de construção de caso clínico e suas raízes psicanalíticas, além de estudar um caso clínico como exemplo da práxis no campo da saúde mental. Ao entrarmos na “rede”, pode-se entender como é possível a articulação da clínica psicanalítica especificamente ao campo da assistência social e das normas sociais vigentes.

Isso significa que não há incompatibilidade entre o que chamamos casos clínicos e casos sociais, se encontramos no campo da psicanálise uma perspectiva que vá além do setting terapêutico. No entanto para que isso aconteça é necessário que a rede seja tecida para que comporte a singularidade dos sujeitos nela envolvidos na práxis. Neste sentido, o analista que costumava escutar sentado em seu consultório, deverá fazer às vezes do analista cidadão conforme nos indica Laurent:

Os analistas têm que passar da posição de analista como especialista da desidentificação à de analista cidadão. Um analista cidadão no sentido que tem esse termo na teoria moderna da democracia. Os analistas precisam entender que há uma comunidade de interesses entre o discurso analítico e a democracia, mas entende-lo de verdade! Há que se passar do analista fechado em sua reserva, crítico, a um analista que participa; um analista sensível às formas de segregação; um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora. (LAURENT, 1999:13).

Para que uma rede receba um caso clínico e tente manejá-lo, necessita ser uma rede viva, em que os atores presentes nestas instituições contribuam para além de suas posições burocráticas institucionais, contribuam com seus corpos e desejos.

No entanto certamente há a constatação de que nem todos os atores da rede estão orientados a partir de uma construção de caso clínico e dispostos a contribuir desta maneira, isto posto, o analista deve estar disposto a costurar a rede e causar os atores envolvidos.

2. A CONSTUÇÃO DO CASO CLÍNICO

Em princípio, é a psicanálise lacaniana que fornece subsídios para se pensar o que é a construção de um caso clínico visto o avanço de seus estudos sobre a psicose. Lacan além de não recuar frente à questão da psicose aprofunda sua análise adentrando o campo da psiquiatria. Sobre as psicoses afirma:

O que abrange o termo psicose no domínio psiquiátrico? Psicose não é demência. As psicoses são, se quiserem – não há razão para se dar ao luxo de recusar empregar este termo –, o que corresponde àquilo a que sempre se chamou, e a que legitimamente continua se chamando loucuras. É nesse domínio que Freud faz a partilha. Ele não se envolveu com nosologia em matéria de psicose mais do que isso, nesse ponto porém, ele é bem claro, e tendo em vista a qualidade de seu autor, não podemos considerar essa distinção negligenciável. (LACAN, 2002:12).


Lacan ressalta a idéia freudiana de que a loucura não é demência. Isso abre as portas para se repensar as práticas clínicas e psiquiátricas. No mesmo livro sobre as psicoses e sua análise do caso Schreber, o autor apresenta uma metodologia de trabalho com a psicose:

Vamos aparentemente nos contentar em passar por secretários do alienado. Empregam habitualmente essa expressão para censurar a impotência de seus alienistas. Pois bem, não só nos passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que ele nos conta – o que até aqui foi considerado como coisa a ser evitada. (LACAN, 2002:235).
O secretariado passa então a ser um modo recomendado por Lacan para escutar o que o sujeito psicótico diz em sua inteireza e vai além:

Não temos razão alguma para não aceitar como tal o que ele nos diz, sob pretexto de sei lá o quê, que seria inefável, incomunicável, afetivo – vocês sabem, tudo o que se arquiteta sobre os pretensos fenômenos primitivos. O sujeito dá testemunho efetivamente de uma certa virada na relação com a linguagem, que se pode nomear erotização, ou apassivação. Sua maneira de sofrer em seu conjunto o fenômeno do discurso revela-nos seguramente uma dimensão constitutiva, uma vez que não procuremos o menor denominador comum dos psiquismos. Essa dimensão, é a distancia entre o vivido psíquico, e a situação semi-externa em que, em relação a todo fenômeno da linguagem, se acha não somente o alienado, mas qualquer sujeito humano. (LACAN, 2002:237-238).

Ao secretariar o sujeito e escutar o que ele diz, existe sua rede de relações, institucionais, e como se arruma com a própria linguagem. Neste sentido pode-se pensar a construção do caso clínico a partir de sua fala. Um dos discípulos de Lacan, o psiquiatra Carlo Viganó apresentou em Conferência proferida no Seminário de Saúde Mental, Psiquiatria e Psicanálise em Belo Horizonte no ano de 1999, o texto “ A construção do caso clínico”. A noção de construção do caso clínico surgiu a partir da preocupação de Viganó com a possibilidade de se cronificar os pacientes recém saídos do manicômio como aponta:

Noutros termos, a segregação que se pode criar com a abertura dos manicômios é criar outros lugares onde se faz barulho sem falar. A abertura dos manicômios não exclui a segregação. A respeito dessa perspectiva, proponho a construção do caso clínico. (VIGANÓ, 2010:118).

O autor assinala a origem etimológica do termo caso clínico:

Caso vem do latim cadere, cair para baixo, ir para fora de uma regulação simbólica; encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível, portanto impossível de ser suportado. A palavra clínica vem do latim klinein e quer dizer leito. A clinica e o ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente com a presença do sujeito. É um ensino que não é teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a partir do universal do saber, mas do particular do sujeito. (VIGANÓ, 1999:118).

O autor neste texto também propõe a clínica aliada à perspectiva da reabilitação, não no sentido médico-ortopédico como pontua, mas no sentido jurídico de direitos e como cidadão. Como no relato abaixo:

O que o laço social fornece ao sujeito para reabilitá-lo permanecerá dentro da série dos objetos fornecidos pelo Outro materno. Nunca vai deixar sair o sujeito de sua dependência. Essa afirmação tem uma consequência: uma reabilitação só pode ter sucesso na condição de seguir o estilo que é sugerido pela estrutura subjetiva do psicótico, por seus sintomas. Poderíamos dizer de sua espontânea reabilitação ou, mais precisamente, de sua espontânea habilitação. (VIGANÓ, 2010:120).

Viganó salienta que o primeiro ponto a que se tem que atentar para a reabilitação do sujeito psicótico a partir da clínica, é o secretariado:

Para conseguir isso, Lacan dizia que o psiquiatra deveria se colocar como secretario do alienado. Aquele que reabilita deve ser não tanto testemunha do desejo do sujeito, como na neurose, mas testemunha de sua existência subjetiva, de sua habilidade para trabalhar. (VIGANÓ, 2010:120).

O primeiro ponto destacado é o secretariado, o manejo clínico por parte do analista. O segundo ponto salientado pelo autor refere-se ao binômio caso clinico e caso social:

Enquanto o caso social é conduzido pelos operadores, o caso clínico é resolvido pelo sujeito, que é o verdadeiro operador, desde que nos o coloquemos em condições de sê-lo. Assinalo que o caso clínico não exclui o caso social. A questão se complica mais um pouco a partir do fato de que há, fundamentalmente, duas construções de clínica que se opõe entre si: uma que mantém separado o caso clinico do caso social, e outra que os articula entre si. Esses dois modos de pensar a clinica podem ser tomados como duas formas de entender a psicanálise e, em particular, a transferência. (VIGANÓ, 2010:121).

Os serviços substitutivos de saúde mental como os CAPS e CERSAM, são instituições que sustentam ou tentam sustentar a concepção de clínica enquanto discurso, o que torna a presença do paciente em sujeito ativo. Assim o autor apresenta a clínica do segundo tipo no campo psicanalítico:

Portanto, lugares psiquiátricos, que oferecem abrigo a neuróticos e psicóticos no momento da crise, no momento de uma insustentável dificuldade de se manter dentro do circuito social, podem representar um momento de uma chance analítica, dentro de uma clinica do segundo tipo, mas, somente na condição de que o momento clínico não seja comprimido pelo projeto terapêutico da equipe. (VIGANÓ, 2010:121).

Ao trabalhar o terceiro ponto que é a construção do caso, Viganó (2010) distingue a noção de construção de interpretação:

Enquanto a interpretação é a decifração dos significantes recalcados, aqueles que a transferência atualiza, a construção leva àquilo que Freud chama de indestrutibilidade do objeto psíquico. Enquanto os significantes se perdem, são esquecidos, o objeto permanece e é esse objeto que deve ser reconstruído. Em termos lacanianos, fala-se de construção do fantasma... Seria mais preciso dizer que o trabalho de construção consiste no testemunho das diversas fases do trabalho do analisante. A construção é o preliminar do ato analítico. (VIGANO, 2010:122).

O autor descreve com clareza como se constitui a realização de uma construção de caso e acentua:

De fato, a construção permite uma margem de previsão, mas o efeito das intervenções só poderá ser avaliado depois das coisas realizadas. Portanto, construir escansões que considerem esses resultados é já um primeiro processo de avaliação ou, se quiserem uma primeira avaliação do processo. Ela se caracteriza pela sua intersubjetividade que apresenta, joga a interrogação do grupo de trabalho sobre o paciente, sem retificá-lo, como um objeto conhecido, mas procurando sempre os caminhos de uma possível subjetivação. (VIGANÓ, 2010:128).

Portanto a construção de caso clínico permite que se pense em intervenções dentro das possibilidades que o sujeito apresenta em seu caso clínico. A construção do caso clínico representa antes do ato analítico, a possibilidade do sujeito lidar com as suplências ou próteses que lhe são próprias para a reconstrução do fantasma.

Esta noção de construção de caso, sustenta uma práxis em saúde mental que é possível e recomendada, e já contempla em seu bojo a concepção de uma clínica ampliada que constitui-se numa relação diferente do analista com seu analisado, como no caso que veremos em seguida.

3. CASO MARIA

A Interssetorialidade passou a ser uma solução alternativa necessária para as diversas demandas encontradas pelas instituições para os sujeitos nela envolvidos. Devido à complexidade das demandas, principalmente o poder público viu-se forçado a repensar as suas divisões burocráticas e setorializadas. O esforço de um trabalho intersetorial pode resultar em soluções mais apropriadas para os sujeitos respeitando suas singularidades. Neste trabalho apresentarei um caso clínico como exemplo de uma rede que pode se articular e encontrar a melhor saída possível para o sujeito em sua singularidade.

O sujeito em questão nomeamos Maria, a título de respeito e confidencialidade que o caso exige, embora seja notório a repercussão do caso em toda cidade. O meu primeiro contato com o caso, foi a partir de uma ligação de uma Assistente social, com voz incrédula e aparentemente assustada, relatando com detalhes o que viu na casa de Maria. Ela dizia que Maria conversava com a televisão e via “macacos”. Maria disse a ela que recebia mensagens de um aparelho que estava instalado em cima de seu telhado. A assistente social relatou ainda que Maria ficou muito revoltada com o divórcio e não deixava seu ex-esposo ver o seu filho, então com 4 anos de idade. O ex-esposo relata que Maria começou a ficar “estranha” a partir do nascimento do filho, e que até então, nunca tinha visto nada de mais em seu comportamento. Este entrou com um processo de guarda do filho, dizendo que Maria não tinha condições de cuidar do menor. Neste momento, Maria dizia que o responsável por instalar o aparelho em sua casa era o ex- esposo. Maria relatava que este aparelho enviava mensagens e raios laser no seu corpo o tempo todo, ao mesmo tempo que era monitorada por câmeras 24hs.

O pai denunciava ao Conselho tutelar maus tratos de Maria a seu filho e solicitou a guarda do filho via justiça. Entrei em contato com a equipe do CAPS para falar sobre o caso. Foi definida uma busca da paciente em sua residência, busca ao qual resultou em uma internação no IRS (Instituto Raul Soares). Seu irmão a tirou do hospital após sete dias de internação. Conversamos em equipe no CAPS sobre a internação, e definiu-se mudar a conduta perante a paciente.

Na primeira visita, ao aproximar da casa de Maria, fomos recebidos com certa desconfiança. Maria apresentou-se bastante logorréica, com pensamento acelerado. Reticente e desconfiada não permitiu que entrássemos em sua casa. Relatou que havia uma rede na cidade conspirando contra ela e incluiu CAPS, Conselho Tutelar, Posto de Saúde e a Justiça. Disse que tratava bem sua criança e que nunca o maltratou, se referindo às denúncias feitas ao conselho tutelar. Relatou ainda que o culpado de ter instalado o “aparelho” e as “câmeras” em casa foi o seu ex-esposo. Queixou-se que estava sendo monitorada “24 horas por dia”.

A partir disso era necessário acompanhar Maria em visitas domiciliares, uma vez que ela não aceitaria vir ao serviço, muito menos qualquer tipo de intervenção medicamentosa. Comecei a visitar Maria periodicamente, de semana em semana, às vezes, de quinze em quinze dias.

Maria continuava dizendo que a rede de Esmeraldas estava conspirando contra ela. Relatou que a Copasa e a Cemig iam visitá-la, para monitorá-la e instalar mais aparelhos em sua residência, por conta disso, relata que começou a ligar para os “Direitos Humanos de Brasília”, pois estava sendo invadida em sua casa e em seu corpo. Para ter a confiança de Maria neste primeiro momento e não ser mais um representante da “rede” a invadir sua casa, foi necessário que eu me apresentasse como uma pessoa que queria ajudá-la sem a carapuça institucional, ou seja, durante as visitas, não podia representar nem o CAPS nem a rede de Esmeraldas.

Em uma destas visitas, Maria relata que não agüenta mais a invasão em seu corpo e os raios que vem do aparelho de televisão. Desta vez, ela muda o nome, não é mais raio laser e sim “buscadinhas automáticas”, escutando vozes, e “picadinhas em suas córneas” e outras partes do corpo. A invasão é tamanha, que a paciente colocou tufos de algodão dentro do ouvido a ponto de ficar inchado. Até este momento, as visitas do Conselho Tutelar aconteciam paralelamente às do CAPS.

Maria sempre foi resistente à medicação, argumentando que nunca teve problema de saúde para ser medicada, inclusive quanto ao incomodo que as vozes e as “buscadinhas” lhe causavam. Quando orientada a procurar o posto de saúde, relatava que não era bem atendida no posto e tinha medo dos “pipocas”.

Percebendo o sofrimento de Maria, pergunto a ela o que é possível fazer para ajudá-la. Ela responde que o alívio só viria se o aparelho fosse desligado, e relata que a única pessoa que conseguiria desligar este aparelho seria a juíza do município. No auge da crise, Maria ligou para todas as instituições públicas de Esmeraldas, incluindo CREAS, CRAS, Fórum de Justiça, e a Secretaria de Direitos Humanos em Brasília, tentando uma solução para o seu problema. Insiste que o seu problema não é um problema de saúde, é um problema de justiça. Maria acredita de maneira implacável em seu delírio altamente sistematizado e articulado.

Após as visitas, Maria comparece algumas vezes ao CAPS para tentar algum tipo de benefício da assistência social, mas não cuidar da saúde. Relata que só veio ao CAPS para conversar comigo, pois eu disse que poderíamos tentar algum auxílio social. Relata que como não tem problema de saúde, não tem como receber o benefício e diz que não volta mais ao CAPS, pois lembra de quando foi internada. Pergunto se posso continuar visitando-a, e ela diz que sim.

Durante todo esse período Maria não colocou seu filho na escola, o que gerou outra denuncia de não respeitar o direito de seu filho ir à escola. Nesse sentido o conselho tutelar manteve suas visitas para tentar trabalhar com Maria esta questão.

Em outra visita, a paciente diz que solucionou pelo menos parte do problema. Indica que quando as vozes a atormentam ela abaixa o volume da televisão. É quando Maria diz que está grávida e está preocupada com a criança que vai nascer, pois as “buscadinhas” invadem seu corpo e podem “afetar” a criança.

Em conversa com o conselho tutelar fica evidente as complicações que poderiam ocorrer deste momento em diante tendo em vista que Maria ainda não aceitava qualquer tipo de ajuda vinda da “rede” de Esmeraldas. Relatava que não poderia ir ao posto de saúde porque era ameaçada pelos “pipocas”, nome dado aos usuários de drogas do local.

Ao trabalhar isso junto com Maria, ela começou a ir nas consultas com o ginecologista, mas sempre se queixando das vozes e das invasões em seu corpo. Apesar disso sempre se preocupou com a criança que nasceria e isso foi importantíssimo para a cooperação dela na difícil tarefa de fazer um pré-natal. Ao discutir o caso com o Posto de Saúde de Novo Retiro, foi indicada uma “vacina” que as mulheres grávidas tomam durante o pré-natal. Assim Maria foi medicada a primeira vez com Haldol decanoato e durante o mês seguinte, queixou-se menos das invasões.

A entrada do conselho tutelar neste ponto foi preponderante para a seqüência de idas de Maria ao posto de saúde. Aos poucos, Maria foi percebendo que a rede queria ajudá-la, e não mais se via ameaçada por esta rede. A queixa girava em torno do aparelho que a atormentava.

Maria começou a ter contrações e teve seu bebê na Maternidade Odete Valadares em Belo Horizonte. Nasceu uma menina com saúde física e querida pela mãe. Ao relatar sobre as invasões que sofria em seu corpo, as “buscadinhas”, a equipe do hospital ficou receosa em deixá-la sair e cuidar de sua filha. Neste momento houve uma reunião de urgência entre CREAS, CAPS, CONSELHO TUTELAR.

A situação era complicada e exigia a sensibilidade da equipe do hospital para que não perdesse a guarda da criança lá mesmo. O hospital enviou Maria para uma avaliação psiquiátrica no HGV, onde foi medicada e voltou para casa com a família. Família que horas antes esteve na mesma reunião de urgência e foi orientada quanto ao tratamento de Maria. Os irmãos estiveram presentes.

O retorno de Maria foi para a casa de sua mãe com sua filha e seu outro filho. Queixou-se muito do motivo, porque o hospital não queria deixá-la ir embora cuidar de sua filha. Não conseguia entender isso.

A mãe de Maria então aceitou cuidar da criança em conjunto com Maria durante o período do puerpério. Após um mês, Maria voltou para sua residência onde cuida de sua filha como uma mãe “normal” o faria.

A questão seguinte envolveria seu outro filho, que até então não tinha ido à escola, o que gerou um prejuízo cognitivo importante. No entanto a questão do aparelho ainda a incomodava bastante, além do fato de acreditar que seu filho não poderia ir a escola, pois corria muitos riscos. Maria dizia sempre que só a juíza poderia desligar os aparelhos que a invadiam.

Ao se discutir o caso com a Justiça na pessoa da Juíza, esta aceitou uma audiência, com a presença de Maria, eu, e a promotora de justiça. Ao explicar o caso á Juíza, explicitei a preocupação com a perda da guarda por parte da mãe, uma vez que apesar de sua estrutura, conseguia cuidar bem de seu filho. Ficou definido que Maria colocaria o filho na escola e as coisas que a incomodavam seriam desligadas. Maria saiu do Fórum dizendo que se sentia aliviada e colocaria seu filho na escola.

Atualmente seu filho está estudando na escola SADI e cuida de sua filha. Namora e acha que um dia pode até se casar de novo.

Nas visitas mais recentes a Maria, esta relata que após um período de tranquilidade das vozes e buscadinhas automáticas, as mesmas voltaram a incomodá-la, e lhe tiram o sossego. Relata que precisa falar com a juíza novamente.

Ao relatar sobre o pai de sua filha Sara, Maria diz que o encontro com o mesmo foi difícil. Relata que pediu ao mesmo que ajudasse com a pensão da filha, mas o ex- namorado pediu exame de DNA. Maria neste momento já é acompanhada e referenciada por outro profissional no serviço de saúde mental.

Esta apresentação de caso clínico envolve atores dos diferentes campos de saber que em todo momento respeitaram um saber que também é genuíno: no caso a loucura e suas amarrações aos nós que se apresentam.

4. ESTUDO DO CASO CLÍNICO

Em supervisão clinico institucional no CAPS I de Esmeraldas, discutiu-se o caso de Maria com a contribuição da professora Doutora Maria José Marcus Salum. 1 Aponta para o que o caso ensina quanto à configuração de uma rede, de uma rede que conspira para uma rede que se torna parceira para o sujeito em questão. Neste sentido, esta rede é “animada” por atores que se propõem a ir “atrás” de Maria.

1 Professora da PUC Minas, Psicóloga, Psicanalista, Pós Doutora.

A professora apresenta a partir de sua visão psicanalítica, o quanto que a estrutura psicótica tem de se encarregar de sua própria defesa contra os intempéries (pulsão de morte) da vida sem a opção que os neuróticos tem por serem enlaçados no campo do outro. Assim os psicóticos sem a proteção do Outro, vivem um perigo iminente, ameaçados a todo o tempo.

Destaca que o psicótico apresenta três etapas para estabilização que constituem a auto defesa, a auto construção e por fim do processo a adesão ao campo do outro, que sempre é vacilante.

A importância de uma rede animada, humanizada, é primordial para que Maria faça a etapa de adesão ao outro, como aconteceu no episódio em que o semblante jurídico auxilia durante um período minimizar o sofrimento oriundo das buscadinhas e vozes vindas dos aparelhos instalados em sua casa. O semblante jurídico funciona como um dispositivo de trocas ao estabelecer com Maria um combinado.

Destaca também a importância de se saber o momento do desencadeamento da psicose de Maria.

Ao continuar o estudo do caso clínico e de seus desenvolvimentos, percebemos que Maria consegue ser uma boa mãe, ou seja, a maternidade não é questão para Maria, nem causaria os desencadeamentos delirantes e alucinatórios. A principal questão de Maria refere-se como observado no último instante do caso, suportar um homem, ou ser mulher. Quando Maria é convocada a este lugar por um questionamento do que é ser uma mulher para um homem, no caso o exame de DNA.

O caminho da estabilização para Maria passaria por suportar um homem e a lidar com estes questionamentos. Este talvez seria o caminho que novamente Maria teria que passar pela autodefesa, a auto construção e a adesão ao outro. Ou seja, recomeça o trabalho.

5. CONCLUSÃO

A construção no lugar da interpretação é que vai orientar a prática do analista no campo da saúde mental. Desta maneira, a clínica se torna ampliada na medida em que o psicanalista, ocupa um outro lugar, e o caso clínico ocupa o centro. A relação entre analista e analisando no campo da transferência prescinde da suposição de saber na pessoa do analista, no caso deste tipo de clínica. Assim o analista se torna um trabalhador da saúde mental, que secretaria o sujeito e prima pela proximidade ao paciente.

Esta proximidade ao se construir um caso clínico não pode estar fora dos registros, pois a relação do paciente com o trabalhador da saúde mental é o que vai determinar a dinâmica dos projetos terapêuticos.

Podemos concluir também que quando um caso clínico está no centro, a partir de uma autoridade clínica, pode inclusive causar uma rede intersetorial. No exemplo do caso Maria, a articulação intersetorial passa necessariamente pelos caminhos que Maria decide percorrer, até o momento em que ela entre da rede de trocas simbólicas, a adesão ao Outro.

A clínica ampliada, portanto, pode contemplar no campo da psicanálise, tanto o caso clínico quanto o caso social e articulá-los. Nesse sentido, a autoridade clínica pode dialogar com a autoridade democrática para o bem dos sujeitos envolvidos. Assim a Intersetorialidade pode caminhar rumo a uma intersecção possível em que não há detrimento de visões importantes na clínica, na práxis e na política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN, J. (1955-56/2002) “Introdução à questão das psicoses” IN: O seminário livro 3: as psicoses. 2.ed. revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002.

LACAN, J. (1955-56/2002) “A significação do delírio” IN: O seminário livro 3: as psicoses. 2.ed.revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

LAURENT, É. (1999) “O analista cidadão”. Revista Curinga, nº 13. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise.

VIGANÒ, C. (2010) “A construção do caso clínico”. IN: ALKMIM, W. D. (org.). Carlo Viganó: Novas conferências. Belo Horizonte: Scriptum livros.

Recebido em dezembro de 2013
Aceito em janeiro de 2014

 
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