ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 13 Janeiro à Abril de 2011
 
   
 
   
  Relato de Experiência  
   
     
  Outro que engana: Outro da Transferência1
Another who deceives: Another Transfer
 
     
 
Cristiana Miranda Ramos Ferreira
Pesquisadora do Grupo Clinicaps,
Mestre em Psicanálise pela UFMG.
Correspondente da EBP- Seção Minas.
Doutoranda em Psicanálise pela UFMG.
Professora na FEAD.
 
 

Resumo:
Trata-se de um caso clínico que apresenta os efeitos da "trivialização na
transferência" na condução do tratamento.

Palavras-chave: Psicose, transferência, "trivialização".

Abstract:
It is a case that presents the effects of "trivializing the transfer" in the condut
of tretment.

Keywords: Psychosis, transfer, "trivialization".
1 II Conversação Clínica Brasileira. Mutações da Transferência: 22 e 23/out/1999


 
 

Este caso foi apresentado em março deste ano no Núcleo de Pesquisa em Psicose, quando tivemos a oportunidade de discutir, entre outros aspectos, a importância da transferência, como um dos pontos principais de sustentação do trabalho até então.
Entretanto, achei interessante rescrever o caso, pois nos últimos meses, surgiram elementos importantes para se pensar a direção desse tratamento.

Em agosto de 1997, aos 40 anos, A. foi internado no IRS, em decorrência de uma tentativa de auto-extermínio - enforcamento.
Foi a gravidade do quadro apresentado por A. que me chamou a atenção.

Durante o primeiro mês de internação, ele apresentava humor deprimido, agitação
psicomotora, perplexidade, alucinações auditivas, idéias de ruína e morte. A. mostravase
tão angustiado, chorando, tomado por vozes que o atormentavam, que não havia
possibilidade de se fazer uma abordagem.

O prognóstico não era favorável, pois A. vinha com uma evolução de mais de 15 anos. Sua primeira crise foi em 1980, com um abandono progressivo das atividades profissionais e sociais, passando por várias internações, apresentando piora acentuada nos últimos anos, quando parou de sair de casa, sempre agitado, andando, fumando e falando muito, estado acompanhado de choro e tristeza. "Nos períodos em que fica melhor, ele fica só deitado e muito calado" (sic-irmã). Em 1997, o quadro de A. se agravara: no início do ano ele havia sido internado por dois meses, sem apresentar melhora e, 4 meses depois, passou a agredir seus familiares, crise que culminou com a tentativa de suicídio. O prognóstico tornava-se ainda mais desfavorável frente a resistência que ele apresentava a fazer qualquer tratamento, fosse ele terapêutico e, especialmente, medicamentoso.

Tocada pelo desafio, me apresentei a ele, oferecendo o espaço do consultório para conversarmos. Dia após dia, eu chamava o paciente e reafirmava minha disponibilidade de escutá-lo - convite sempre recusado. Quando eu ia embora, me despedia, informando que no dia seguinte, estaria lá novamente. Num primeiro momento, ele começou a me evitar, mas aos poucos, passou a entrar no consultório trazendo fragmentos de sua história, elaborações sobre sua doença, "Meu problema é fraqueza sexual", ou apenas seu desespero "me ajuda dotora, meu pinto não funciona. Um homem que não funciona não serve pra nada", "sou feio demais eu não devia ter nascido", "Elas não param." (?) "As vozes, elas ficam falando que eu sou brocha, que é pra eu me matar". A medida que ele começava a suportar o atendimento, foi sendo possível construir sua história.

A. é o filho mais velho, tendo uma irmã e um irmão. Foram criados pela mãe, pois o pai faleceu, quando A. tinha apenas 4 anos. Perda irreparável, pois, sem o pai, diz ele: "eu não tinha quem me falasse como é que se faz filhos, como é que engravida uma mulher."

Aos 19 anos, faz uso de maconha. Vive nesse momento uma primeira experiência: perde a noção de espaço e se vê reconhecido e perseguido por todos.

Passada a loucura da droga, resta um efeito em seu corpo: "Dei muito azar. Só um trago
de maconha e fiquei assim: fraco, feio." Faz, assim, referência a uma fraqueza, que, nesta época, ainda não atrapalha, mas que já começa a se insinuar.

Mas é, em 1980, aos 23 anos, poucos meses após iniciar trabalho na oficina da rede ferroviária, como o pai, que se dá a ruptura. Ele descreve: "Me deram um chá, depois é que falaram que era de cogumelo. Fiquei alucinado, saí correndo pra porta da igreja com um prato de comida na mão. Todo mundo começou a rir de mim. Me chamavam de Azinho - Doido, que quis dar comida pros santos mas eles não quiseram comer. Aí começou a perseguição."

Em 1984, uma segunda crise, que é, para ele, a que faz um corte em sua vida:
"Depois de 84 nunca mais fui o mesmo"; "Adoeci porque estava preocupado, estressado, com problema de fígado e de rim", "aí veio a fraqueza, não conseguia fazer mais nada". Posteriormente fala sobre esse momento, dizendo da relação com uma 'neguinha' que queria se casar com ele: "Ela tinha mau hálito, aí o mau cheiro foi passando pra mim, até que foi apodrecendo meu corpo todo por dentro". Podemos acrescentar, também, a este momento, o nascimento da sobrinha, filha do irmão, alcoólatra, com "uma negra que fudeu a vida dele". A sobrinha foi acolhida por A. como uma filha, sendo ele o responsável por seu sustento.
Depois desta crise, voltou a trabalhar, mas diz que não se sentia realmente em condições
de fazê-lo, pois desde então, A. sentia essa fraqueza. Descreve esta, e as internações que
se seguiram como: "De repente fico fraco, fico brocha, quero trabalhar mas não tenho força pra mais nada".

Em 1994, A. foi aposentado, entretanto manteve as atividades sociais. Gostava de sair para jogar baralho com os amigos, visitar parentes. Atividades que foi abandonando, a medida que a fraqueza ia tomando conta de seu corpo.

Retomemos a internação de 97. Esta internação foi fundamental para o seu tratamento, pois neste período, a partir do trabalho de escanção dos termos por ele privilegiados: feio e fraqueza, foi possível um deslizamento, para, feio: aquele que não trabalha; quem não trabalha: não tem honra; mas dar conta de viver, e uma vida difícil como a sua, é algo honrado. A conseqüência desse trabalho foi uma virada no quadro e A. faz uma primeira crise tipicamente maníaca em sua vida. Passada a exaltação, ele pôde continuar seu tratamento no H.D.

Após a alta foi bem difícil sustentar seu vínculo com o serviço, pois inicialmente, o vínculo era basicamente comigo, mas a partir das atividades socializantes, passeios, reuniões e futebol, seu laço como H.D. foi se estreitando.

Durante o primeiro ano do tratamento, A. se organizou em torno de uma frequência irregular ao H.D. pela manhã; frequência a bares de sua vizinhança, à tarde: "Com amigos não, conhecidos, porque eles querem é me levar para o mau caminho."; três ampolas de Haldol Decanoato a cada 30 dias; e um ou dois atendimentos semanais, comigo. Nestes atendimentos, A. se restringia, basicamente, a questões do cotidiano: trabalho/ocupação, uso de bebidas alcoólicas, pesadelos, medicação, relação com família e dinheiro. Entretanto, essa é uma estabilização um tanto precária. No final de 1998, essa organização começa a vacilar.
Para acompanharmos um pouco melhor os entraves para a sustentação dessa estabilidade, talvez possamos recorrer à descrição que ele faz do desencadeamento: "Me deram um chá, depois é que falaram que era de cogumelo." Nesta fala, dois pontos importantes podem ser ressaltados: um é que, há aqui, uma relação com a droga, e o outro aspecto, é que nesse contexto ele se vê confrontado a experiência de um outro que engana.

Para A. não há distinção entre a medicação e droga – Haldol, chá de cogumelo ou maconha, entram em uma série indistinta. "Enlouqueci com drogas. Como é que elas podem me ajudar?" - O uso do Haldol sempre foi uma negociação delicada, e a partir do final de 98, sua resistência se intensificou. Por mais de uma vez ele interrompeu o uso da medicação, o que resultou em passagens pela urgência, com quadro agitação, logorréia e exaltação do humor. Passada a agitação, ele reconhece, ao menos temporariamente, a necessidade de fazer uso da medicação.

Quanto ao segundo ponto, esse outro que engana, parece ser crucial nesse caso.
Por um lado, parece que, o que tem sustentado a transferência, até agora, é justamente, a
terapeuta não ser tomada como esse outro que engana. Entretanto, há uma certa
delicadeza, uma instabilidade nessa posição, pois, nos momentos mais delicados da vida desse paciente, a falta da terapeuta, parece ser tomada, como uma reprodução desse
momento inaugural, de estar frente a um outro no qual não se pode confiar.

Um primeiro episódio, onde podemos evidenciar isso, foi no final de 1998, quando ao ser informado da proximidade das minhas férias, A. tem um aumento de sua atividade delirante, trazendo, pela primeira vez no atendimento certo delírio de referência de forma um pouco mais consistente: "Estou pensando em me mudar de estado, para a Bahia, onde as pessoas não me
conhecem. Aqui parece que todo mundo me conhece, no ônibus as pessoas ficam falando de mim, eu entro elas tossem...". "quando eu estou de bicicleta, todos os motoristas jogam o carro em cima de mim".

Podemos tomar ainda, dois outros momentos em que houve mal entendidos
quanto ao horário do atendimento – do desencontro, o que fica é minha ausência. Em
resposta, ambas as vezes, ele sumiu do serviço por alguns dias e quando retornou, já foi
na Urgência: agitado, logorréico e desagregado, tendo que ser internado. Interessante
anotar sua ironia ao me ver na sala de observação: "Sonhei que eu estava sendo
internado e que você estava lá."A atividade delirante, que já se anunciava no final de 98, se intensifica ainda mais este ano. Em 1999, além das duas internações mencionadas acima, teve ainda uma terceira internação consequente ao abandono da medicação. Neste período, as idéias de referência dão lugar, a suspeita de que ele é um ser diferente, especial, pois já passou tantas vezes perto da morte e não morreu, que só pode ser uma proteção divina, talvez sobrenatural. Enumera: escorpião, afogamento, vários atropelamentos. . . E finalmente,
começa a localizar em uma tia, a figura do perseguidor: "Ela alterou o meu registro.
Todo mundo lá em casa tem o S, dos santos2, menos eu." Acusa-a de ter substituído um
suposto S, do sobrenome paterno, por Z. Todas as desgraças de sua vida são, então,
consequência dessa alteração.

Nesta internação3, ele traz o 'motivo' da perseguição: "Vou te confessar uma
coisa: eu estuprei uma menina." Relata, então, brincadeira sexual com uma prima,
quando ambos tinham seis anos. Confessa também, outro crime: "Estuprei um neném
de 6 meses. Eu tinha 12 anos e meu pinto já era maior um pouquinho, mas eu não tinha
nem esperma, só gala4" - (explica que é a secreção do adolescente, quando ainda não
tem espermatozóide) "Minhas priminhas ficaram sentando no meu colo e eu fiquei
excitado. Peguei o neném e passei a pererequinha dela umas seis vezes no meu sexo
duro, aí saiu a secreção." Afirma que nas duas vezes não houve penetração.

Ao final do atendimento, a pergunta: "Já te falei tudo da minha vida, sobre as drogas, sexo e agora isso. E se você quiser usar isso contra mim e me prender?..."
Após a 'confissão', a hostilidade que A. já vinha apresentando se acentua.
Parece querer por em cheque até que ponto, eu e a instituição, somos de confiança:
"Isto aqui é uma prisão ou um hospital?", "Você é psicóloga ou delegada?", "Será que um dia e vou sair daqui?", "E agora vem o fim de semana e nem conversar com vocês eu vou poder." Respondo ao paciente, dizendo que, como, naquele sábado, eu estaria no hospital, poderia passar na enfermaria para atendê-lo.

Durante este atendimento mantém a hostilidade, contudo, quando eu já estava saindo da enfermaria ele me aborda no corredor e diz: "Eu já e falei que ontem eu fiz xixi num copo, depois escarrei nele e bebi, e que depois passei cocô na boca? Você e esse pessoal aqui podem até me condenar e me prender, mas eu já me purifiquei"
Respondo: "Está mais tranquilo agora? Então está bem."

Na segunda-feira seguinte, A. inicia uma melhora progressiva: mais calmo, mais
organizado, menos agressivo, com diminuição da atividade delirante e da hostilidade.
Temos, então, que a transferência tem tido efeito sobre esse caso. Mas em que medida esta transferência tem sido estabilizadora ou desestabilizadora? Como manejá-la no sentido uma trivialização, para que se constitua num instrumento a favor do tratamento?

Como um dado de última hora, trago ainda um último atendimento. Na véspera da alta, A. trouxe uma informação importante, que nos ajuda a pensar sobre seu momento atual. Em abril, ele se viu novamente confrontado a esse outro que engana.
Relata que teve uma relação sexual com uma 'nega', 'droguera', que, no meio da transa
lhe pediu que tirasse a camisinha.

Podemos dizer que, desde a adolescência, A. divide as mulheres em três grupos: as virgens e casadas com as quais não se deve mexer; as mulheres da zona5, que é para fazer sexo seguro, porque exigem o uso de camisinha; e as mulheres da rua, que devem ser evitadas, pois são 'drogueras', transam com qualquer um, transmitem doenças, etc.
À esse terceiro tipo pertencem: a mulher que "fudeu" a vida do irmão, a mulher que em
84 fez seu corpo apodrecer por dentro e finalmente, esta mulher com quem transou
recentemente.

__________________________________
2 Quando fala, refere-se aos santos da igreja, mas é preciso marcar, que Santos é o sobrenome materno.
3 29/06 a 25/08/99
4 Bras. NE: sêmen, esperma.
5 Desde a adolescência A. sempre frequentou assiduamente a zona. Ele descreve, inclusive, uma prática interessante: sai de casa, para ir à zona, porém, antes passa na Igreja São José, onde acende uma vela ou dá dinheiro para Santo Antônio, agradecendo sua potência sexual. Interrompeu esse hábito nos anos em que se viu tomado pela fraqueza, retomando-o desde 97, quando saiu da internação.

Ao ocorrido, A. responde, delirantemente, com uma suspeita de que ela esteja
grávida dele. Seu saber vem do fato de que 'pessoas' tem lhe dito isso. "Como é que eu
vou deixar uma mulher dessa criar um filho meu?", "E se ela quiser tomar meu
dinheiro?"

Recebido em Julho de 2011
Aceito em Setembro de 2011

 
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